segunda-feira, 7 de abril de 2008

...e foi durante um belo dia de boas ondas...

domingo, praia do sítio do conde, praia sem vento, ondulação de força média, séries de meio metro, com bastante paciência podia se encarar uma seriezinha de um metro, a cada uma hora, demorando muito... podia-se dropar lá no outside com as ondas gordas e abrindo, a uns cinqüenta metros da beira da praia, e ir até a areia numa mesma onda, com ela se fechando vagarosamente até fechar completa na areia...

o mar vazio comigo e outra cabeça surfando de um lado pro outro, uma onda atrás da outra... tipo de brincadeira que dá vontade de morrer brincando, de não parar, de ficar até quebrar tudo, até a água do mar secar ou o corpo ir se liquefazendo...

toda esta brincadeira começou sábado e foi entrando pelo domingo melhor do que nunca... foi quando fui pego de surpresa por uma experiência que já ouvira falar ser cotidiano dos surfistas... a terceira experiência mais traumática de minha vida como surfista (e primeira foi quando partiu o leash num swell monstro e eu estava sozinho no mar, imaginem, voltei nadando com o mar puxando muuuuito... a segunda foi quando quebrei a quilha na minha perna e me machuquei feio)... corpos ao mar, afogamentos, cadáveres boiando... no meu caso, um garoto de 14 anos se afogando, já sem forças, no meio de ondas grandes, engolindo muita água...

eu ia dropar uma das ondas grandes quando ouvi uma voz gritar socorro... confesso que não levei a sério, pensei ser garotos brincando, tinham vários ao redor, dei as costas e segui para o fundo, mirando as ondas... foi quando ouvi de novo, “socorro, eu vou morrer, socorr”... a voz foi calada pela água sendo engolida... olhei na direção do som, atrás de mim uma onda crescia e ia quebrar exatamente em cima do rapaz que só tinha as mãos fora dágua...

isso tudo ocorreu em mim exatamente como descrevo agora... por um, dois, três segundos, tive medo e passou pela minha cabeça dar as costas, ir pedir ajuda, perto do garoto tinha umas pedras também, nós dois podíamos nos machucar, ele tinha quase meu tamanho, ia ser difícil retira-lo dali, e se eu saísse dali ele iria morrer, sem dúvida... mas juro que só foram três segundos... porque eu não resisti ao apelo da vida do rapaz, em desespero... e fui salvá-lo...

e no meu cérebro naquele momento, lembrei do livro de saramago “o evangelho segundo jesus cristo”... do trecho que aborda o erro de josé ao ouvir uma conversa entre soldados romanos que tratavam do velho pesadelo de herodes sobre o nascimento do salvador do povo que acabaria com seu reinado de maldade e tirania... para preservar seu reinado, herodes ordena a morte de todos as crianças primogênitas da galiléia... ao ouvir aquilo, josé ao invés de lutar contra todos e avisar vizinhos e parentes e tentar salvar a vida de algumas crianças, covardemente foge com o filho para as colinas e de lá, com a vida do filho salva, passa a noite ouvindo os gritos desesperados de pais e mães assistindo a cruel morte dos seus filhos...
a conseqüência deste ato covarde leva josé a loucura e um dia, com jesus adolescente, quando ele é preso pelos soldados romanos, se entrega e pede a morte na cruz... cristo descobre que sua vida é fruto de um ato de covardia do pai... aí começa o sumiço de cristo, o trecho de sua vida que pouco se conhece...
abaixo trecho que faz referência ao livro: “Porque é que o carpinteiro José não avisou todas as mães de Israel daquilo que José sabe: que Herodes vai assassinar todos os recém-nascidos do reino? Para salvar Jesus, para que Jesus cumpra o seu destino, que será, também, a sorte da morte? Será que José reserva Jesus para a morte na Gólgota? Para isso salva-o Herodes? E os outros, todos os outros meninos, esses o quê? Pode elevar-se a glória de Deus ou de um governo sobre a miséria de um só menino morto?”
...acima um quadro do artista barroco Peter Paul Rubens, "O Massacre dos Inocentes", ilustra este momento da loucura de herodes...
e naqueles segundos eu pensei nisso tudo... e vi o garoto me olhar e pedir socorro de novo... e nadei como nunca em direção ao rapaz, e quando estava a dois metros dele, uma última onda o cobriu com força, eu esperei, ele desapareceu na espuma e não subiu pra superfície, eu larguei a prancha, mergulhei e agarrei ele pelos braços e subi ele jogando-o em cima da prancha... ele se agarrou em desespero na prancha... atrás uma onda imensa decide quebrar de novo em cima de nós dois, tomamos a vaca e ele se distancia de mim, uns dois metros e volta a engolir agua... eu o alcanço e seguro ele apoiando-o na prancha... o mar não deu trégua, vinha uma outra onda, ainda maior... eu grito para ele, “segure minha mão, e não largue”... ele responde “eu vou morrer, não me deixa morrer”, eu gritei, “vai morrer porra nenhuma rapaz, eu vou te tirar daqui, agora puxa o ar e mergulha que ta vindo outra onda”... ela já quebrava em cima da gente... não dei tempo pra ele respirar... mergulhei e puxei ele com força pro fundo... ele se debateu mas eu segurei, e quando senti o alivio da força da onda eu subi, ele estava zonzo, e vinha a ultima onda da série, maior de todas... ele chorava e eu disse “para de chorar porra... respira que a gente vai mergulhar de novo”... e quando a onda chegou perto, eu mergulhei e puxei ele de novo, neste momento ele já foi mais fácil, já não segurava minha mão, eu tive que fazer força para segura-lo, o que comprovava que ele estava ficando inconsciente... era a ultima onda... o mar alisou... eu coloquei ele na prancha e fui indo pra beira... ele vomitava água e estava grogue... ainda chorava... cheguei na beira da praia e ele não tinha forças pra nada, já estava quase desmaiado... coloquei ele no colo e fui pra areia... uma multidão se aglomerou ao meu redor... chegou o salva vidas, não conheço primeiros socorros, deixei ele fazer o serviço dele, e ele também não sabia... mas o garoto se manteve acordado e vomitou bastante água, o que era bom... muita gente ao redor... senti que tinha feito minha parte... aparece meu pai... pergunta o que foi, se assustou, pensou que tinha sido eu... aparece a mãe do menino, desesperada... eu fui voltando pro mar... meu pai passou do susto já tava mais tranqüilo... fui voltando pro mar... alguém grita... “foi o surfista minha senhora”... eu viro... ela vem em minha direção e me dá um beijo e me abraça dizendo... “você é uma alma abençoada, é o salvador de meu filho, obrigada, você tem uma missão aqui, era pra você estar no mar, era pra você estar lá... você é um anjo rapaz, um anjo”... fiquei emocionado... disse a ela que só fiz o que tinha de ser feito, como qualquer outro em meu lugar...

virei de costas... e segui pro mar... dei as costas a todos... e de repente ouvi a multidão me aplaudir, uns quinze segundos... eu não virei de costas... fiz questão de ser um qualquer para todos eles... sou um humano como outro qualquer... que não saberia assistir a morte sentado, tranqüilo...

voltei ao mar... surfei quinze minutos e ouvi garotos gritando e fui ver o que era... eram garotos brincando... eu estava tenso, preocupado, ouvindo coisas... não consegui mais me concentrar no surfe... deixei o mar... meus pais estavam orgulhosos, e eu também... eu consegui... salvei uma vida... e senti medo, como um ser humano deve sentir, mas não me acovardei... superei... mas já era o bastante por aquele dia...

tive medo... não gostaria de viver aquilo de novo... mas acho que aprendi a lição de que essas coisas não se escolhe... é muito difícil encarar o fato de que existe uma vida nas suas mãos... e muito difícil imaginar que eu posso fazer alguma coisa e não farei... decidi fazer um curso de primeiros socorros... quando decidir salvar alguém, irei de verdade, até o fim...
http://www.cdof.com.br/socorros2.htm

é assim que deve ser... e é assim que será...

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